De manhã dispo-me sem preocupações ou preconceitos. O andar é alto, o terreno em frente, desabitado, ao longe os carros não me vêm para além da luz reflectida no vidro. Por isso solto a toalha e esfrego energicamente o cabelo, deixando tudo o resto em exposição.
Olho para a tua casa, em pedaços, os restos carbonizados das vigas no tecto são visíveis a vários metros de distância. Demoro o olhar naquele bocado de telhado ainda intacto, as telhas laranjas e sujas sobre o frontão da casa, convidando os visitantes a entrar. Conto as janelas, as portadas entreabertas largadas ao abandono. Numa delas um ramo entra indiscriminadamente sem pudor. As janelas abaixo ainda têm vidraças, poucas e partidas, nas portadas de madeira branca, firmemente fechadas. E é ali, na terceira janela, junto à esquina do pomar que me detenho, gelada. Espero sempre um vislumbre do teu olhar, desse olhar que sinto cravado em mim, na minha pela nua, enquanto a tua guardará para a eternidade as cicatrizes desse fogo que te colheu.
Espero-te, mas nunca te vejo.
Por vezes parece-me avistar uma leve sombra branca, transparente como consta que um fantasma deve ser, mas sei que não passa de sugestão do meu cérebro fantasioso.
Estarás mesmo aí? Ficaste presa a essa casa, que queimaste juntamente com a tua vida, o teu futuro, a tua juventude? O arrepio que me percorre a espinha é mais profundo que o frio. Já estou agasalhada e mal dou por isso. Nunca sei, nunca percebo. Os meus olhos são conduzidos para a tua janela e nunca estás lá. E o meu corpo cobre-se, para evitar a inveja da tua alma, do teu fantasma amaldiçoado.
Volto costas e retomo à realidade. O pequeno-almoço, as coisas a levar ao trabalho, e esqueço-te por mais algumas horas, até chegar, preguiçar alegremente pelo quarto de vestir e procurar-te, uma vez mais naquela que sei que é a tua janela. Aquela de onde me olhas.
Um dia talvez te veja. Um dia talvez te esqueça.